domingo, 22 de julho de 2012

Entrei devagar pela porta do quarto que se tinha esquecido de fechar. Cheirava a carne dilatada impregnada com um odor duvidoso de cheiro adocicado. Dei um passo em frente com cuidado para não tocar no espanta espíritos que pusera para dar o sinal de alarme. Havia em tempos obrigado toda a gente a usar guizos presos nas pernas. Uma moda que lhe ficou do tempo em que a casa estava cheia de gatos. Naquele dia, não saíra como habitualmente para regar as plantas do quintal. Encontrei-a estendida no chão, fingindo-se de morta. Os olhos entreabertos e cabeça forçadamente inclinada para trás deram-lhe o impulso necessário para abrir a boca. Um veio de saliva estranhamente espesso pregava-se desde o céu da boca até ao maxilar inferior. O cheiro fétido vinha dali. De quando em quando, um fedor mais forte fazia-se chegar, balançando o fio de baba como um pêndulo oscilante. Deixei-a ali. Já não era primeira vez que fazia aquilo. Resolvi que naquele dia não iria voltar por minha iniciativa. Era o que teria feito, não fosse o cheiro ter piorado incrivelmente a meio da tarde. Tive que entrar. De novo. No quarto. Fios de saliva amarela atados ao grande lustre dourado, lançavam-se num balançar suave para as grades da cama. A janela aberta para o jardim. Deixava ver as suas queridas plantas. A cama estava vazia. Havia aberto um buraco a cerca de um metro da nespereira e deitara-se lá. Com uma fina camada de terra a cobrir-lhe o corpo. Deixava ver um bocado da túnica creme com minúsculas florzinhas rosas salpicadas de poeira fina lançada pelo vento do fim de tarde. As plantas já tinham sido regadas. Sentia-se a cheiro térreo da terra molhada como depois de uma chuvada de Maio. Regar foi o último acto da sua vida. O seu corpo emanava agora um aroma estranhamente agradável. Deixara de cheirar mal. Cobri-a com bocados de terra arrancada às punhadas cheias do seu canteiro de malvas preferido. Evitei lançar-lhe os torrões maiores. Um manto de poeira elevou-se e coalhou o laranja do pôr-do-sol daquele fim de tarde. Minúsculos pozinhos reluziam na distância. Uma despida cheirosa para este dia que começara com um estranho odor a carne dilatada.

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